À deriva

Andava à esmo, beira mar, fim de tarde. Buscava, mais que um rumo, queria um porto seguro pra ancorar. Cansara de navegar sozinha. Não queria mais vagar no mar revolto dos relacionamentos casuais. Também se recusava a continuar ancorada no mesmo cais à margem da vida. Sentia que enferrujava!
Ser barco de aluguel pra quando algum amor de verão, um turista qualquer resolvesse velejar... Hoje, amanhã, nunca mais, vá saber? Essa incerteza toda, também não queria não! Tampouco cogitava a possibilidade de voltar atrás e retornar aos portos já visitados. Embora fosse bom visitá-los às vezes e matar saudades, não pretendia mais lançar âncoras naquelas paragens. Águas profundas demais, já quase naufragaram o veleiro de sua alma uma vez. Pra que arriscar de novo, se Netuno não se mudara dali e não mudaria jamais? Melhor não!
Buscava uma paz de águas tranquilas. E sabia que um dia havia de encontrar. Só não sabia onde, ou que rumo tomar. Tristes, as cartas náuticas atuais não prometiam mares muito navegáveis. Pra ser sincera, intuía, que as cartas náuticas atuais nada prometiam.
Ainda assim lhe dava paz ver o mar. Era como se ele entoasse pra ela uma cantiga de ninar. A colocasse em seu colo e cantasse, vem, menina, eu te faço dormir. Era como se ele a embalasse em seu doce ir e vir. Como se o som do mar calasse todas as dores que gritavam e ansiavam dentro dela.
Sentou-se sozinha na areia e sua razão se fez chegar:
- Mas não era pra você estar feliz hoje? Depois de uma noite de amor? -Perguntou-lhe a razão.
-Era, voz da consciência, era pra eu estar muito feliz...
-Nós fizemos de tudo pra que fosse bom, pra te ver feliz, queríamos que fosse um presente pra você...
-E foi! Foi um presente muito bom. Duro é ter que voltar à realidade, sem ele... Sabe a crueldade? É horrível não ter o brinquedo que a gente sempre sonhou. Mas às vezes pior é perder o que se conquistou.
- Não sei se faz sentido pra mim...
- Imagina uma criança que teve nas mãos o brinquedo que tanto queria, ainda no colo de Papai Noel. E viu o afeto no rosto daquele bom homem. Pense na alegria dessa criança, ao ganhar seu sonhado presente.
- Sim é muito bom ganhar o que se deseja ardentemente! Foi o que aconteceu, não foi?
- Sim! Agora imagina a vontade que essa criança sente de retê-lo, mesmo sabendo que ao descer do colo do bom velhinho, seu presente iria evanescer? Pense na tristeza que ela sentiria ao saber que tocando a pontinha de seu pé no chão, seu sonho iria simplesmente desaparecer, perder-se no ar?
- Hum, difícil!
- Foi assim que me senti. Ainda lá, deitada em seus braços que me envolviam depois do prazer, e sabendo que não poderia (deveria) ficar. Sabendo que tinha que acabar. E que quando eu pusesse meus pés no chão, meu sonho começaria a se desfazer...
- Eu te entendo. Embora não consiga compreender só com meus neurônios. Faz sentido, é lógico pra mim.
- É a lógica que contraria o bom senso. Se foi bom, por que tem que terminar? Porque não dá pra continuar?
-Ah, isso eu sei responder: Porque se continuar, vai apegar, se apegar vai estragar, se estragar vai acabar, se acabar vai sofrer, se sofrer vai chorar, se chorar vai doer, se doer vai sangrar...
- Mas se sangrar, não vai parar? Se parar, não vai sarar? Se sarar, não vai cicatrizar? Se cicatrizar, não vai parar de doer? Se parar de doer, não vai querer de novo? Se quiser de novo, não vai ficar bom? Se ficar bom, não vai querer continuar?
- Não! Tá bom, vai, vai! E vai dar errado de novo! - Retrucou a razão.
- Mas por que? Por que não pode dar certo?
- Porque o mundo é grande, as possibilidades são muitas, e as chances de errar são enormes!
- Não me importo, eu sou da luta!
- Você não aprende mesmo, não é? Eu achei que o problema fosse com o seu coração. Mas não coitado. Nem ele pode com você! Com essa sua mania burra de se apaixonar!
- Eu quero tentar. Tentar até minha alma fazer calo. Até o sentimento se acabar. E como eu sou toda amor pra dar, acaba a carne, esfola a alma, mas eu não deixo de amar, de sentir, de me apaixonar!
Desolada a razão se levanta da beira do mar e sai caminhando em silêncio deixando pra trás aquela moça, aquele barquinho a deriva que no fundo, no fundo, era só coração, sem noção e sem razão alguma.
Por Cris Vaccarezza

0 comentários :

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...