O desafio de sentir

Foi necessário aguçar sentidos e exercitar sentimentos para escrever esse texto. Não só por ser tarefa de casa, mas por sentir que com relação ao tema, a inspiração não me favorecia nesse momento. Vai ver que é porque estou mais habituada a raciocinar a vida, que a senti-la. Desde pequena ouvia: Raciocine! Raciocine! Ninguém nunca me disse: Sinta... Ainda assim, eu precisava sentir.
É que sentir significa experimentar algo nem sempre bom. Às vezes, os sentimentos não são agradáveis, e as sensações, piores ainda, mas o aprendizado é sempre útil, por mais penosa que seja a experiência. Enfim, forçada a sentir, tenho experimentado uma infinidade de temperos emocionais. Só porque passei a sentir sem preconceito, a sentir sem filtrar. A dar ouvidos ao sentir.
Tudo começou com uma impressão de que alguma coisa estava errada na minha forma de me relacionar com o mundo. Principalmente com o digital. Vivia embotando sentimentos, alugando-os virtualmente. Tudo muito vago, tudo muito fake. A internet é um anestésico potente para da vazios da alma. Nos sentimos virtualmente acompanhados, enquanto nos tornamos cada vez mais solitários. Todos hipnotizados, linkasos, plugados a uma rede virtual. Irreal. Cada um trancado em seu quarto, em sua cela, buscando interação. Querendo arrancar calor de uma tela fria. Para resolver esse dilema, puxei o fio e resolvi viver um pouco mais no mundo real.
Feriado prolongado e eu sentindo coisas que há muito esquecera. O prazer de um almoço em família sem hora para terminar. O prazer de ficar na cozinha, três gerações de mulheres, a louça, o papo, suas alegrias e demandas. O prazer de ouvir o outro. Sem pressa. Sem cobranças como há muito não vivia.
Ir ao cinema, sem ter um filme especifico pra ver. Chegar ao cinema e escolher uma comedia despretensiosa pra assistir, comendo pipoca. E rir, rir muito, sabendo que pode-se levar o tempo necessário no cinema, na rua, na pipoca, no papo, que ninguém vai te cobrar. Nem se resolver repetir a sessão, ou a sensação.
Sentir novamente o prazer de ter um livro de verdade nas mãos. O cheiro das páginas novas, o prazer de folear as páginas, deitada na varanda, com uma xícara de café recém saído do coador. E ver a lua nascer no horizonte.
O prazer de um abraço, de querer e ser querido. De dar e sentir calor. O prazer do afeto, de beijar faces, afagar cabelos, tocar a pele, sentir-se viva outra vez.
O prazer de dançar, de ouvir as musicas que se quer ouvir, de toca-las até enjoar. De se levantar e mover no ritmo da melodia. O prazer do movimento, de se fazer flutuar. E sentir o coração bater, no passo ou no descompasso, pulsando, acelerado mesmo, depois da dança. Sentir seu coração bater...
O prazer de deletar um habito ruim, de excluir um contato que gera ansiedade por uma resposta que não vem, deletar uma saudade unilateral. O prazer de superar um limite, de vencer a si mesmo. O prazer de tomar um sorvete, de andar calmamente entre pessoas, de se vestir como quer, e não como dita a moda. O prazer de acender um incenso e acompanha-lo queimar sem pressa, até o fim.
O prazer que hoje sinto, em experimentar a vida de outra maneira, menos automatizada e repetida, posso comparar ao prazer do ex fumante, quando volta a sentir o sabor das comidas e o cheiro da vida que ele voluntariamente retirava com o uso do cigarro. É claro que como o dependente químico, às vezes também sente saudades. Mas quem disse que sentir saudades também não é sentir-se?
Sei que nada na vida dura eternamente, nem o prazer. Mas até agora, tenho redescoberto o prazer de encontrar-me comigo mesma. Em silencio, aos poucos. De escolher, de ser livre.
Por Cris Vaccarezza

1 comentários :

Anônimo disse...

A internet é um anestésico potente para da vazios da alma... Não vi ainda definição melhor para os desígnos de quem busca a internet como a um divã de um psicólogo. É assim dessa maneira, um anestésico que, após passado o efeito, transforma o vazio quase num buraco negro. Digo com conhecimento de causa porque já fiz da internet refúgio para meus descontentamentos. Mas, a vida, como sempre, nos oferece nem que seja uma fagulha de oportunidade para conhecermos o mundo que não fica entre o teclado e a cadeira. E é impagável a sensação do desafio proposto. Sentir é melhor que olhar! Parabéns, Cris! Saudosista sempre! Dani

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