SADE - Serviço de Atendimento ao Dependente Emocional

0 comentários

Me diz o que é que eu faço pra tirar você da minha cabeça... Finalmente tomei Semancol. Mas isoladamente, esse remédio não cura ninguém. Precisava da fórmula do desapego a você.
Entrou na minha cabeça colorindo tudo, preenchendo vazios. Inundou meu cérebro de endorfinas, serotoninas, me deu o maior barato de neurotransmissores. Me drogou de felicidade,  e agora, cadê você? Gerou um dependente e aí? Como é que eu tiro você da minha cabeça?
Se todo veneno tem antídoto, pra toda química, tem que haver reversão! Até pra feitiço tem reza! Tudo tem um efeito contrário.
Se o responsável técnico pela adição, é você. Cabe a você me ajudar a curar! Aguardo uma solução. Por favor, me envie a fórmula. Mandarei manipular urgentemente. Quero me libertar. Não quero mais ficar esperando seu telefonema, que passa noite, passa dia e não vem... Não quero mais ficar olhando seu perfil, pensando em quando você vem me visitar de novo. Não quero mais ficar fazendo planos a dois e reservando seu lugar ao meu lado. Não quero mais fingir que está livre, uma cadeira que está virtualmente ocupada. A vida continua. Ficar marcando passo é o fim!
Preciso urgentemente do serviço de atendimento ao dependente emocional. No popular, ao drogado mesmo. Sim, porque viver assim é uma droga! Se não tiver esse serviço, crie um. Para quem distribui sofrimento em domicílio, para quem é especialista em desamar, isso é uma obrigação contratual. É direito meu, se precisar, vou ao PROCON. Principalmente em caso de propaganda enganosa. Eu poderia enquadrá-lo na lei do desamparo ao consumidor. Da infidelidade contratual. A indenização costuma ser bem cara! Eu, no entanto, não estou pedindo muito. Quero apenas receber a fórmula. O antídoto, a cura, a libertação.
Na entrega, que seja à distância. Mantenha a distância. Pode mandar por e-mail, SMS ou telegrama. Não quero entrar em contato. Não quero consultoria domiciliar. Por favor, nem pense em vir pessoalmente trazer a fórmula. É tarde demais para manutenções esporádicas. Então melhor, evitar recidivas. Já que sumiu, agora desapareça de uma vez da minha cabeça!
Há vícios que nos consolam exatamente com aquilo que nos faz falta. E de ausência nos alimentamos... infinitamente.
Só que sua ausência não alimenta mais. Quero presença, quero calor. Por favor, vá em paz!
De você, só quero a fórmula do esquecimento, distância, e nada mais!
Por Cris Vaccarezza

E o inverno chegou...

0 comentários
Então chegou o inverno. E eu, tô com muito frio! Nada mais nesse inverno, me aquece. É que o frio vem de dentro. Vem do coração. Invertido. Congelando tudo, de dentro pra fora. Alma, sentimentos, sangue, carne, pele. Tudo!
Antes, me diziam com frequência: "Que mãos frias! Sinal de coração quente!" Sim, meu coração era quente. Eu estava sempre lá. Era toda coração. De alguma maneira, eu queria fazer parte, sorrir, colorir, amparar, consolar... Nunca compreenderam. Cansei. Não quero mais! Agora as mãos são frias, como o resto do corpo. Gelado. Acho que morri um pouco por dentro, sem notar. O coração, de tanto calejar, já começa a endurecer...
Fruto da insensibilidade humana, fruto da minha própria imprevidência. Deixei abertas, as janelas da minha alma. Achei que não haveria mal que pudesse entrar. Não me preveni contra a friagem dos corações alheios. Adoeci de incredulidade. E agora o inverno chegou, enraizou, faz parte.
Deve ser fruto do tempo. Deixa estar. Deve ser pra que eu me torne menos doce, menos risonha de menina, e encontre a gravidade típica de mulher, que os tons prata acrescentaram ao cabelo. Não se pode destoar. Deve ser para que eu desenvolva o olhar de quem aprendeu a desconfiar. Chamam isso de amadurecer. Eu chamo de começar a definhar. 
Agora é tarde! Agora, não me importa se lá fora a chuva cai, se a nevasca adensou ou passou, se o sol algum dia vai voltar. Quero ficar aqui dentro! Quero ficar cada vez mais dentro da minha concha, da minha casa, mais em cima da minha cama, mais pertinho do meu cobertor. Ele me aquece um pouco a alma fria. Ele me conforta um tantinho a dor. Que me importa mais se o mundo gela, ou se ferve em ondas de calor? Aqui dentro é só gelo. As coisas são como são. E a frieza de algumas almas, enfim me contaminou. 
Quero ficar à distância. Não tenho mais o mesmo calor. Antes, eu era toda afeto, antes, eu queria abraçar, acolher, dar amor. Nunca compreenderam. Nunca aceitaram de peito aberto, um coração para aquecer o outro. Agora não me interessa mais. Sei que esse inverno, um dia vai passar. Quem sabe algum dia quebre o gelo? Mas por hora, mais por dentro que por fora, fica como está, congelado...Não quero mais calor!
Por Cris Vaccarezza

Simbiose: Ainda há amor que valha a pena!

0 comentários
Como eu queria dizer alguma coisa nesse dia dos namorados. Mas tô só a emoção. Dia dos namorados é sempre uma data estranha para quem está sem namorado. Parece que todo mundo está em um clima romântico e você, no meio da Patagônia, congelando, sem casaco e sem esqui. Um peixe fora d'agua!
Ainda assim, love is in the air!
Então, para falar de amor, vou citar a história de um casal de amigos meus. Há muito que esse amor me inspirava a escrever, mas não sabia o que. Eu os acho tão especiais, que o texto precisava ser muito especial. Agora, aproveitando que a data é especial, em função do contexto, mais fácil perdoarem a pobreza da narrativa, perto do valor da história. Afinal, um amor assim, dispensa comentários.
Ele, um sujeito inteligente, esforçado e gentil, que se esmera para estar presente de maneira significativa na vida das pessoas. Valoriza o olho no olho, sabe perdoar. Tem a voz tranquila, na intervenção oportuna. Sabe criticar sem ofender. Sabe alertar, sem invadir. Sabe repensar. Ela, um sorriso lindo, num corpo delgado, emoldurado por um rostinho de boneca. Tem a graça nos movimentos e a leveza nas palavras. Sabe ser doce e dengosinha, mas também sabe se fazer entender quando lhe desagradam. É amiga fiel dos que ama. E os defende como pode, embora respeite, acima de tudo, as suas decisões. Sabe sorrir e iluminar. Sabe fazer de sua presença uma alegria constante, e de sua ausência, uma lacuna notória. Uma lady, essa minha amiga. Já que já os descrevi em separado, permitam-me agora, descrevê-los em conjunto: Simbiose.
No dicionário, simbiose signifiga relação biológica harmônica entre dois ou mais seres de espécies diferentes, onde ambos são beneficiados e em que ambos precisam um do outro para sobreviver. A simbiose particular desses dois, poderia ser assim descrita, no dicionário: Simbiose: s. f. Def.: Relação biológica harmônica entre seres da mesma espécie, (mais especificamente da mesma espécie de gente elegante, inteligente e discreta, com a qual é sempre harmônico conviver), onde ambos são beneficiados e em que ambos precisam um do outro para sobreviver. Sinônimo: Josué & Michele, cujos caminhos, a vida cruzou; as estradas tornaram paralelos, nas diversas viagens que já fizeram juntos; e a dança uniu definitivamente em simbiose.
Sim, eu sei, é certo que "definitivamente" é tão relativo quanto o próprio tempo, a verdade, o infinito, as escolhas de cada um. E quase tão subjetivo quanto. Imperativo mesmo, é aprender a lidar com as impermanências.
Mas, vamos combinar? Quem lê: "Moreno, me convidou para dançar e durante a noite, ficamos a beijar. Foi assim que Josué, meu beijo pôde roubar. O beijo foi tão gostoso, que precisei reprisar. De tanto reprisar, fui ficando. E ficando, comecei a gostar. Gostei tanto, que começamos a namorar. O namoro foi um processo, que prefiro nem comentar. Mas a história não acaba. Tem muita água para rolar. Quem sabe com esse moreno, ainda acabo por casar...". Dela, a respeito dele, pode pensar em impermanências? Ao contrário, sabe que é uma história de amor que estamos ouvindo contar.
E quem lê:" Com o tempo nota-se que o "outro" é tão parte integrante do "eu" que chega ao ponto de um confundir-se com o outro!!! Sou Josué, mas pode me chamar de Michele Cristina!!", nota-se que mais que de amor, é de uma relação biológica das mais harmônicas, que estamos ouvindo falar. Definitivamente, estamos diante de uma simbiose.
Na simbiose, os seres biologicamente envolvidos, relacionam-se servindo-se e protegendo-se, mutuamente. A tal ponto de confundirem-se, lindamente. No caso deles, mais que as mãos que se confundem unidas; mais que os lábios, que se confundem juntos; mais que os corpos, se confundem entrelaçados; são as almas que co-fundem-se, ao se encontrar.
Confundem-se a tal ponto que a distância entre um e outro quase inexiste, embora preservem os limites da individualidade. É o que se chama tornar-se um. É a sensação mais desejada nesse mundo moderno. O amor qualidade de vida. Um tipo de amor muito raro. Só ocorre, porque os dois são muito caros um para o outro, a ponto de sair de si, transpor o egoísmo e a acomodação e se colocar no lugar do outro. Isso é simbiose, mutualismo, isso é doação.
Graças a Deus, é um amor imune à inveja, pois só sendo ou Josué, ou Michele, para viver esse amor, tão particular. Se mudassem os parceiros, o resultado também seria desigual. Não adianta querer se por em seus lugares.  Só eles o são. Mas, como nada é perfeito, talvez não seja imune à maledicência. Nesse mundo, pouca coisa é. Então, meus caros, não se contaminem! Imunizem-se. Guardem seus ouvidos um apenas para o outro. E, mais que nas palavras, que não haja dúvida que não encontre resposta nos olhos de vocês.
Amem-se, preservem-se e protejam-se mutuamente. Para que esse amor cresça. Apenas cresça. Amem-se mais e mais, para que mais pessoas acreditem que podem encontrar o seu par simbiótico. Para que mais e mais pessoas aprendam a falar do amado de forma tão bela. Aprendam a falar aos amados, o quanto são efetivamente amados.
Esse é o tipo de amor que se supõe comemorar num dia dos namorados. Só posso desejar que esse amor continue e que eles sejam exemplo, para que o dia dos namorados continue tendo motivos para comemoração.
Por falar em Dia dos namorados, não sei qual foi o presente que Josué deu a Michele, e você versa. Mas sei (mesmo sem saber), que esse foi o bem menos importante que trocaram nesse dia, perto das declarações de amor, dos olhares longos, das mãos que se apoiam mutuamente, do estar juntinho, que certamente existiram.
Não basta ser namorado, tem que se enamorar inteiro, do dedo do pé à raiz do cabelo, para viver um amor verdadeiro e ver-se protagonizar uma simbiose assim.
Por Cris Vaccarezza

Quarentar

0 comentários
Bom dia, Loba! Foi seu primeiro pensamento naquele dia. Levou quarenta longos anos, mas a idade emblemática chegara afinal.
Talvez os primeiros indícios, precoces, fossem um discreto pratear de cabelos na fronte, aqui e ali. Que se tornaram mais e mais intensos. Essa ou aquela marca de expressão, quando um sorriso maior se desenhava. Que com o tempo, foram se tornando mais intensos. Uma leve dificuldade para enxergar detalhes, pequenas letrinhas num papel. Que aos poucos, foi se tornando mais intensa. E agora, enfim, por conta de tanta intensidade somada, se tornava, naquela manhã, a famosa e intensa "loba".
Segundo um relato ouvido recentemente, "a loba é uma mulher dita de mistérios fascinantes. Um tipo de mulher madura, de sabor intenso, de alma pacifica e abrandada pelo tempo, de carne tenra, de toque suave. Um tipo de mulher miticamente, fatal."
Fatal mesmo, para ela naquele momento, era o tempo, que como as águas do mar, ao mesmo tempo traz novos sedimentos, novas conchas e grãos de areia, também remove sedimentos, cascalho, dando nova forma à praia. Renovando, renovando sempre. Inevitável. Tão inevitável quanto respirar. Embora não remoçasse, ao contrario, senilescesse. Era assim, renovada que se sentia. Como se sentira aos dez, aos vinte, aos trinta. Um novo período que se iniciava, como um novo capitulo de um livro, que traria novos detalhes desconhecidos à velha história. Virava mais uma página.
Ainda ontem, os últimos minutos dos trinta e nove. Despediram-se. Encerrava um cilclo balzaquiano. Agora, tinha quarenta. Quatro décadas e nenhuma vergonha de dizer.
Naquela manha, a loba nascera. Frágil e receosa ainda. Insegura como tudo o que nasce, se inaugura, estréia. Mas sabia que aos poucos, com o virar das páginas, a experiência necessária chegaria a bom tempo. Daqui a mais algum tempo, talvez estivesse mais segura, altiva, ainda mais prateada , andando tranquilamente pela floresta do tempo.
Seus sonhos, ainda eram os mesmos, conduzir a matilha a um descanso tranquilo ao final do dia. Zelar, cuidar. Aprender, amar. Quem sabe encontrar algum lobo solitário disposto a unir as matilhas, a também cuidar e ser cuidado.
Mas queria, queria sim caminhar. Por este caminho novo que Deus desenha à sua frente. Queria provar dessa fruta madura com a curiosidade de quem tem dez, somada à ansiedade de quem tem vinte, a calma de quem tem trinta e a maturidade de quem, agora, tinha quarenta anos.
Que venham os novos desafios! Que não falte o trabalho, que enobrece a alma. Que não falte a perseverança para levantar todos os dias. A loba já acordou! Mas que venham também as novas alegrias, pois a loba tem fome de novidades e está pronta para viver.
Queria que aquele dia amanhecesse nos braços de um grande amor, em uma praia paradisíaca dessas por aí, e só depois de muito beijo, a loba fosse liberada para matilhar. Mas a vida é um desacerto harmônico, e afinal despertara. Era hora de recomeçar !
Por Cris Vaccarezza

Última chamda para o vôo 6141

0 comentários
No saguão do aeroporto procurava desesperadamente uma tomada para carregar o iPhone. Não queria perder o contato com a casa, a família, os amigos que por breve período deixava para trás. Se sentia menos solitária assim, conectada. Era urgente que achasse uma tomada.
Em um canto, lá estava ela, e melhor, desocupada. Havia uma cadeira vazia não tão distante dela. Perfeito! Isso lhe daria meia hora de carga, até o embarque. Depois de deixá-lo no carregador, sentou e percebeu os olhos vagos,  as mãos nuas sem a tela fria do celular para se ocupar.  Meu tocador de musica, meu leitor de livro eletrônico, meu visualizador de fotos, meu controle financeiro, minhas redes sociais, tudo estava preso a uma tomada a alguns metros dali, fora do meu alcance.... Vou ter que achar outra ocupação.
Olhou em volta. Muita gente imersa em seus mundos digitais, muita gente que ia e vinha. Do outro lado, no entanto, uma coisa chamou a atenção. Um homem moreno, quarenta e poucos anos, porte de executivo, elegante, tinha o olhar fixo em sua direção. Instintivamente invadida, baixou os olhos. A seguir lentamente virou-se e conferiu em volta. Negativo, atras de si, só uma parede branca. Nem um quadro. Nada que pudesse estar mantendo fixa a atenção do rapaz. Queria resistir, mas discretamente olhou novamente e seus olhos encontraram em cheio com o dele que não se desviaram. Pensou alto, mas tão alto que quase pode ouvir seu sonoro: Oxi! Não pode deixar de lembrar a canção de Vanessa de Mata: "Um homem bonito assim, o que quer de mim, o que ele fará comigo?" ruborizou. Maldito iPhone! Tinha que ter descarregado?
Sem se conter novamente, seus olhos foram, sem escalas, pousar no rapaz que ainda olhava, e dessa vez, sorriu o sorriso mais lindo que ela já tinha visto. Fato! Meu mundo caiu! Abriu a bolsa procurando alguma coisa para manter ocupados os olhos que ela não conseguia controlar de tão curiosos: "Olhos flechando meus zelos,bem que o meu corpo já me mostrava. Tentação das mais safadas, sem dor sem penar". Olhou nervosamente o relógio. Ainda faltavam vinte minutos para o embarque. Encontrou na bolsa uma bula de um remédio para dor. Era o que ela precisava! Inclusive para prevenir futuras dores na alma causadas por aquele tsunami emocional sentado ali mais à frente. Mais, algo para cativar os olhos, enquanto o tempo se arrastava.
Finalmente anunciaram o embarque. Correu, acondicionou o telefone no bolso e dirigiu-se para a fila que já ia meio longa. Não pode deixar de dar uma ultima olhadinha para onde o Deus grego se sentara, mas ufa! Ele não estava mais lá. Uma pontinha de arrependimento nesse alívio todo. Sempre tem, né? Afinal, e se fosse ele, o cara?
Entrou na aeronave, desviando de pessoas que já haviam embarcado. Poltrona 6A, janela, onde está? Ali! Mas já havia alguém sentado na 6B e se nao fosse o susto, teria desatado a rir ali mesmo! Quem poderia estar atrapalhando o trafego para a sua poltrona se não o bonitão do saguão, a personificação do homem da beleza madura? Longo suspiro e um quase sussurrado 6a, estendendo para ele, o bilhete que comprovava o seu infortúnio. Ele riu olhando-a nos olhos como se pretendesse invadir a alma. Levantou o seu próprio bilhete e disse rindo: 6b...Ela riu. Que jeito? Mas sentindo que pessoas queriam passar, e tomar seus acentos, ele tirou os olhos dos dela, instantaneamente e se levantou para lhe oferecer a passagem. Mais que isso, no trajeto se ofereceu para segurar a pesada mochila que ela levava, até que se sentasse. Findo o processo, sentou ao seu lado.
A longa espera pela decolagem se tornou ainda maior devido à tensão. Ela não movia um músculo além dos necessários para a respiração e o piscar dos olhos. E foi assim, quase sem piscar os olhos, que assistiu a todas as explicações de segurança do voo. Nunca prestou tanta atenção. Buscou na mochila o iphone, pretendia ler um livro, mas pra seu azar, os celulares deveriam permanecer desligados, mesmo os que dispunham de modo voo. Inconformada desligou o aparelho e permaneceu com ele entre as mãos até para evitar maiores movimentos.
Finalmente o avião decolou e a tensão foi evaporando aos poucos. Notava que talvez em solidariedade ao seu estado de espirito, ele nem lhe dirigisse o olhar. Sentiu-se grata e aliviada por breves vinte minutos até que uma voz grave rompeu o silencio: "o avião tem entrada para carregador de celular..." achou que não era com ela, mas ele indicava a entrada USB à sua frente, localizada bem ao lado da pequena tela nas costas da poltrona à sua frente. "Ô Deus, é comigo!" pensou. Ainda meio confusa com a informação, perguntou mais uma vez, enquanto ganhava certo tempo para lidar com o proprio nervosismo: Como? - O avião, tem entrada USB. Indicava ele. Você pode carregar seu iPhone aqui.
-Ah, obrigada. Respondeu num meio sorriso já desconcertada e voltou a atenção para buscar o cabo carregador na mochila e encerrar a conversa. Mas ele nao se deu por vencido: "-Olha, ela ri...Notei que você estava tensa no saguão, procurava uma tomada para não se desconectar." Ele percebeu, pensou. Ela apenas sorriu e balançou a cabeça afirmativamente, em resposta. -Prazer, meu nome é Marcus, sou advogado, disse, estendendo um cartão elegante de visitas e a mão para que apertasse. Notei que você estava sozinha. Viajar sozinha dá uma sensação de vazio, nao é?" Mas o que é agora? Pensou. Ele lê pensamentos? Deve ser uma mistura do mago Merlin com Lancelote. Eu mereço! Limitou-se a responder um "tem razão" entre dentes. Ficou calada por um segundo, mas antes que ele dissesse mais alguma coisa, resolveu tomar uma atitude, sair na frente: - Você é muito observador! -É que te observo desde a cafeteira, antes de você entrar no saguão. Estava sentado na mesa atrás da sua. Vi quando chegou, pediu um capuccino e um folhado de ricota, vi a forma polida como tratou o funcionário, vi quando a sua filha telefonou." Nesse momento ela ficou assustada com a riqueza de detalhes e com a invasão de sua privacidade. "Nao queria ser indelicado, mas você me chamou tanto a atenção que senti uma ponta de ciúme do felizardo que te ligava e fiquei aliviado quando ouvi você dizer Também te amo filha!". Agora sim, olhava para ele intrigada. A timidez dera espaco à indignação. - Deviam fazer mesas mais afastadas nessas cafeteiras, imagina se eu estivesse falando assuntos íntimos? -Nossa! Seu olho brilha quando você fica brava!
Desarmou todas as defesas. Isso é o que podia ser chamado de ter pegada mental. Ele nem a tinha tocado e já conseguira sua atenção. Ela sabia perfeitamente disso, mas, hipnotizada, nao conseguia, nem sabia mais se queria resistir.
Envolta no papo dele nem viu as horas de voo passando. E se pegou pensando, cada vez mais envolvida: "será meu Deus?" Foi então que ela reparou que estava pouco atraente. O cabelo preso num coque, de óculos e sem um batom. Pediu licença, e foi à toalete para melhorar a imagem. Se olhou no espelho, soltou os cabelos, tirou o óculos, passou um pouco de gloss e voltou sentido-se melhor. Mas dessa vez não se sentou na poltrona da janela para evitar pedir passagem, ficou na cadeira livre, à direita dele, junto ao corredor do aviao. A mudança no visual teve efeito imediato. A visão dele se iluminou. E desse angulo em que agora se sentava, percebeu um brilho a mais além do brilho nos olhos dele. Notou um anel não identificado antes em sua mão esquerda. Apressou-se em pensar, deve ser anel de formatura. Ele é advogado. Advogados adoram anéis de formatura. E continuaram no papo animado de antes, ele vêz por outra estendia a mão e a tocava, no joelho, no braço, em alguns momentos, quando a conversa engrenava, e descobriam mais e mais coisas em comum, mais e mais coincidências, similaridades, e iam ficando mais embevecidos um com o outro, mais a mão se alongava no punho dela. Até que ele ficou mudo. Manteve os olhos nos dela, segurou sua mão e disse: -eu quero continuar te vendo. Tenha certeza de que nos veremos ainda muitas vezes. Venha para o meu aniversario. Semana que vem...
-Meu aniversario também é semana que vem! Terça. -Serio? O meu é sábado! Somos do mesmo signo! Eu senti uma coisa especial desde que vi você. Moramos em cidades diferentes, mas temos que nos ver. E olha, eu nao quero ficar, quero namorar. Quero que conheca meus filho, quero conhecer sua familia. Diga que também sentiu o mesmo.
Ela sentia sim. E estava admirada com o fato de aquele homem ter uma postura tão correta, respeitosa, sem insinuações secundarias. Teria encontrado mesmo o amor da sua vida?
-Você precisa conhecer a minha família! Quero que seja amiga do meu filho. E de Amanda! Você precisa conhecer Amanda! Ela é tão legal!
- Amanda é a sua ex mulher... Interrompeu ela.
-Nao, a atual.- Respondeu com tranqüilidade.
... ...
- Oi? ... Como assim? Você é casado?
-Sou! -E continuou olhando fundo em seus olhos, como se dissesse a coisa mais natural do mundo.
Sabe aquele nó que dá na garganta e te obriga a engolir seco? Foi assim. Tirou a mão da mão dele imediatamente e teria mudado de lugar se houvesse outra poltrona vazia além da sua própria, junto à janela.
-Você não me disse isso...
-Você sabe o que significa isso? E apontou para o anel em sua mão esquerda que parecera brilhar mais depois da volta ao banheiro. Sempre estivera ali? Fora guardada em algum bolso antes da ida ao banheiro? Nao tinha certeza. Só sabia que nao se tratava de um anel de formatura, mas de uma aliança.
-Eu vivo com Amanda há três anos. Ela é uma mulher muito especial. Uma parceira para todas as horas.
-Desculpa, eu me enganei, achei que era outra coisa, imaginei que fosse um anel de formatura, nunca uma... Desculpa!
-Você mudou comigo...
-Mas claro, você é casado. Eu pensei que procurava uma namorada...
-Mas eu procuro uma namorada. Amanda e eu não temos esse problema.
-Como assim? Vivem uma relação aberta?
-Nao, mas nao há traição. Um dia ela me perguntou por que as minhas amigas sumiram. Respondi que eu estava casado e elas se afastaram, pois queriam um namorado e nao um amante. E ela me falou. E por que você nao namora com elas? Eu queria que você namorasse com elas para eu assistir. E foi assim que comecei meu primeiro relacionamento que durou 6 meses. Sempre saímos os três, dançávamos, nos divertíamos, nunca houve traição. Mas ela conheceu um outro rapaz, terminamos e ela está noiva. Todos choramos quando o relacionamento acabou. Ha muito tempo nao aparecia ninguem, mas voce me chamou a atenção. Eu quero namorar você.
-Desculpa, nunca vivi uma situação assim. Eu quero um namorado de verdade, sabe? Para apresentar à minha mãe?
-Mas você vai me apresentar à sua mãe. Nessa ocasião, Amanda será apenas uma amiga nossa. E tem mais, eu uso aliança, quero compromisso. Ainda mais morando longe, você vai usar também.
Nao sabia se ria, ou se chorava. De tão inusitada a situação. Estava tão encantada... Ele nem sequer a beijara, e queria usar aliança?
O pouso foi anunciado. Ele continuava conversando e nao fosse por aquele detalhe, seria o dia mais feliz de sua existência recente. Mas o detalhe existia. E se chamava Amanda.
Desceu do avião. Ele a seguia. Pegou a bagagem, prometeu telefonar. Tomou um taxi na entrada do aeroporto, assim que fez a curva, procurou o cartão na bolsa, olhou uma ultima vez. E rasgou-o em pedacos pequenininhos atirando pela janela do taxi. A tentação era forte demais. Se guardasse o cartão, sabia que acabaria ligando.
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...