Missão cumprida, pensava! Acima das montanhas, a despeito do
despenhadeiro mais alto, estendia as asas firmemente, e se lançava com
segurança. Certa de que só não chegaria ao seu destino, se não fosse a vontade
de Deus. Mas não seriam seus medos, nem a chuva, nem os raios, nem mesmo a
escuridão da madrugada que a afastariam de seus planos.
Conseguira vencer aquele medo afinal! Pensava em como seria
se não tivesse vencido. Muito mais complicado. A natureza não se cumpriria. A
cadeia não se completaria. E tudo graças à doce menina Janaína.
Lembrou de repente, de quando não tinha asas. Rastejava,
pulava do poleiro para o chão da gaiola e de volta para o poleiro. Ave de
rapina criada em cativeiro, limitada, amestrada, uma lástima. As asas, podadas,
atrofiaram. A zona de conforto de seu mundinho conhecido, criara grades
poderosas em torno de seus pensamentos: Os medos! E que grilhões poderosos, são
os medos!
Aquele pássaro estava fadado a comer do que lhe davam
diariamente no pratinho da gaiola. A viver engaiolado.
Ocorreu que um dia, os donos do viveiro deixaram de vir
alimentá-la. Mudaram, deixaram o viveiro. Ao sair, deixaram também a gaiola
aberta para Sinhá partir. O barulho da casa calou, a comida escasseou. Mas
Sinhá não partiu. Não sabia partir, só tinha aprendido a ficar.
Condicionado, permanecia no confinamento, mesmo com a
portinhola escancarada. Os dias se passavam e o pássaro adoecia de tédio e
solidão. Morreria assim, aquém do que fora destinada a ser, por medo,
conformismo até.
Um dia, passando pela casa abandonada, uma garota viu pela
fresta da porta, a gaiola. Tinha ido ali libertar um pássaro mais jovem, um
beija-flor que recusava o cativeiro, brigava, entristecia, sua gaiola fora
esquecida fechada por descuido. Mas ele, sem mais poder fazer, cantava. Sinal
de que não desistira de voar. Foi o
canto do beija flor que a atraiu. Ao se aproximar do beija flor, ela viu que
além dele, havia no recinto a velha coruja na gaiola. Essa, coitada, além de
não cantar, nem um corrupaco fazia, nem um pio... Estaria morta? Talvez
adormecida.
Cuidadosa, curiosa, intrépida, como toda menina, Janaína se
aproximou da gaiola. Observou que estava aberta, e a coruja respirava, mas nada
fez. Respeitou seu tempo. Foi somente lá pelo quinto dia, quando a velha coruja
se apercebeu de sua presença, que ela tentou chamar a sua atenção para a porta
escancarada à frente: -Olha, está aberta! Voe! Passe por ela!
A coruja olhou divertida aquela menina. O que ela saberia de
vôos, se era um ser humano? Mais que isso. o que saberia de gaiolas, se nunca
fora aprisionada? Não arredou pé de seu poleiro. Ao contrário, acomodou-se
ainda mais. Quem sabe aquela garota ia embora. Afinal, conseguira o que queria?
O jovem beija-flor estava livre. Mas Janaína não conhecia limites para a sua
fé. Voltava dia após dia e tentava insistentemente atrair a velha coruja para
fora da gaiola. Levava frutas frescas, coisas novas. A coruja esperava que ela
fosse embora e só então as experimentava. Percebeu que eram bons os sabores que
vinham de fora. Algo além da ração.
Todos os dias, Janaína vinha, oferecia o dedo para que ela
saísse e nele se empoleirasse. Sentava, ficava ali, imóvel, persistente. E
nada. Um dia, a velha coruja, foi tomada de um ímpeto selvagem e resolveu se
aproximar, não até a porta da gaiola, só um pouco mais perto. Ver melhor aquela
garota, espiar. Mais um dia, mais perto. E qual não foi a alegria, finalmente
no dia em que a velha coruja resolveu se arriscar além da gaiola e pousar na
mão estendida.
Janaína se surpreendeu com o toque áspero das garras longas.
Que engraçado, pensou: Eles podam as asas de um pássaro para impedi-los de
chegar ao céu, mas as garras que o prendem ao chão ninguém pensa em cortar. A
coruja, meio desajeitada apertava os dedos da mocinha com mais força que o
necessário. A ânsia de equilibra-se lhe feria as frágeis mãos. Sentia o peso da
responsabilidade de sustentá-lo, mas ela aguentou firme. A coruja confiava
nela, não podia recuar. E foi assim que a magia se deu, como toda transformação
efetiva e duradoura, pouco a pouco.
Certa manhã, ao chegar à sala, foi surpreendida ao ver a
coruja fora do cercado, passeando tranquilamente pelo chão. Seu coração
apertou. Mistura perigosa de ingenuidade e excesso de confiança. Sabia que por
ali havia gatos, e esses, famintos, o que não fariam com uma velha e
inexperiente coruja, que mal sabia voar? Pacientemente, ofereceu-lhe a mão e
aproximando-a do rosto, com carinho, alertou sobre os perigos do lugar. Voar
era preciso, mas antes disso, era fundamental aprender a se defender.
Não se sabe ao certo quanto tempo se passou. O fato é que um
dia, Janaína chegou e a coruja não estava mais lá. - Fora comida pelo gato! Com
toda a certeza! pensou aflita. Angustiada, passou o dia da porta para a janela
a espreitar se algum gato aparecia portando penas suspeitas, ou com o pelo
tingido de vermelho. Seria possível fazer algo ainda para salvá-la? As
esperanças extinguiam-se com o passar das horas. Já era final da tarde quando
inesperadamente, foi a própria coruja que apareceu na soleira da janela,
trazendo um gafanhoto no bico. Sua primeira caça.
Suspirou aliviada. Estava livre, estava a salvo! Ainda
assim, surpresa, se perguntava: - Meu Deus, coruja come gafanhoto? Achei que
caçavam coisas maiores! Mas vá lá! Levou o dia inteiro, mas aquele gafanhoto,
valia por um gato inteiro!
Por Cris V.
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