Como um cavalo, trabalhou...


Dez e meia da manha, o sol já ia alto, o asfalto fervia, o trânsito infernal de sempre no meio da metrópole. Um ir e vir de gente, um zigue-zaguear de carros apressados, um zunir de motos pelos corredores e um buzinaço de endoidecer monge budista. Nada diferente de um dia "normal". Nada que fosse digno de chamar a atenção dos estranhos. De repente, ao passar pela avenida apinhada, uma ilha, um vazio. 
Eis que ali, no canto da via, jazia um equino jogado. Era magro, muito magro, branco de tão pálido, bege de tão sujo e imóvel, parecia nem respirar. Ao seu lado, agora suspenso, o grilhão de toda uma vida, a carroça. O que mais chamava atenção no bizarro do quadro, era  o contraste entre a pesada ferramenta de trabalho, até há pouco a ele atrelada, e o estado esquálido do pobre animal: Trabalhara até a morte. Finalmente, aquele pobre animal conhecia o sabor da liberdade. Somente agora, estava livre dos arreios e chibatas, e descansava ali, no chão, entregue, às moscas e à comiseração pública. Que lástima!
Lastimava ainda mais a falta de divindade daquele ser humano, tão humano, tão racional, que levou o irracional àquele estado. Que imensa necessidade tinha, para permitir tamanha atrocidade? Não teria aquele animal demonstrado qualquer sinal de fadiga antes de desabar morto no meio da avenida? Ou seriam eles mais duas vítimas do inevitável, da desigualdade, da cegueira social, das bolsas-isso-e-aquilo, que supostamente livram da miséria? Que livramento de miséria teria poupado a vida daquele pobre cavalo? Talvez a educação! Quem sabe se aquele desesperado, ao invés de bater com a chibata num lombo magro, tivesse aprendido a ler e escrever, o final dessa história tivesse outro fim. Será? Será mesmo meu Deus, que estamos no caminho certo? Aquele animal não fora vítima do egoísmo. Fora vítima do "que jeito?"! Enquanto nossos pratos recheados, nossas camas quentinhas, nossas casas perfeitas nos aguardam, para muitos, só resta o "que jeito?".
E o corpo permanecia ali, num canto da avenida. Tão benevolente fora o bicho, que cairá morto num canto, sem atrapalhar o transito. Morreu como vivera, sem chamar a atenção para seu drama. Sem reclamar.
Ao seu redor, quatro ou cinco animais, dos racionais, provavelmente curiosos. E finalmente, agachado junto ao bicho, um Zé... Ou João, Carlos ou Pedro. Um apóstolo qualquer, testemunha final da agonia de seu companheiro de trabalho, que tristemente acompanhava o pouco que tinha, tornar-se ainda menor, diante daquela perda. Um necessitado, que ora lamentava, provavelmente preocupado com quem iria carregar aquela carroça de volta pra casa. Mais que isso, como render o dia de trabalho perdido.
E agora? Quem garantiria o pão dos meninos mais novos, quem garantiria o fumo da mulher, que por sua vez, fornecia o leite do mais novo? E quem garantiria o trocado extorquido pro crack do mais velho? Quem garantiria o trago de cachaça que lhe permitia engolir toda aquela dor, deitar e dormir até o próximo sol? Conformado, como todo brasileiro, começou a arrastar a carroça para longe, antes que fosse multado ou penalizado por aquela morte. Um ultimo olhar praquele que fora seu sustento e partiu cabisbaixo de volta pra casa. Sem remorsos. Tinha que tocar em frente. Que tempo tem de ter remorsos, um homem como ele? Que jeito?
É, Zé! Pelo jeito, tem jeito não...
Por Cris Vaccarezza


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