Alheia

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Quem seguisse até o fim da rua da saudade, dobrando à direita na esquina do tempo, poderia vê-la sempre lá, no hall da casa 14, sentada sozinha, escrevendo ou lendo alguma coisa. O corpo ainda na terra, como mandava o figurino, mas a cabeça, ah! A cabeça dispersa em sonhos pelo universo, muito, muito longe dali.
Sentava-se ali sozinha e nada dizia a qualquer transeunte, apenas lia, lia... E escrevia, talvez suas memórias, talvez sua alegria.
Escrevia para que recordasse, apesar das mãos enrugadas, da face sulcada, das alegrias da mocidade já vivida. Escrevia para recordar. Quem sabe, reescrevesse para corrigir o fio da reticência em algum parágrafo torto, ou alguma reminiscencia de seu passado.
Só mesmo quem fizesse muita questão de percebê-la, a divisaria da paisagem. Sentia-se tão bem por ali, que mimetizara-se. Mas não era mal educada, alheia apenas. Se a cumprimentassem, ela responderia, talvez um menear de cabeça, quem sabe um breve levantar de mão. Um cumprimento vago, nada mais. Nunca  mais os efusivos bye-byes de outrora, nunca mais os olhos de profunda ansiedade, aguardando o trem na estação. Agora, aguardava apenas o trem de ir embora.
A vida lhe ensinara que os caminhos não seguem necessariamente por onde esperamos. A vida lhe ensinou a resignar-se. Resignada, passou a escrever sua história à sua maneira, deixou de dar satisfação a quem não a compreendia, ou de dar bom dias formais, apenas por dar. parou de perguntar como estavam. Ninguém haveria de querer saber de verdade. Mera formalidade social. Odiava, disso tinha certeza, as banais formalidades sociais.
E assim vivia, alheia. Com sua cara amarrada e seu sorriso interno, sem notar o barulho dos passantes, sem ligar a mínima para o mundo lá fora, o mundo, que em verdade, nunca lhe pertencera, e ao qual, há muito deixara de pertencer.
Por Cris Vaccarezza

O rei do Lulu

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Em tempos de Lulu, quem tem muitas qualificações, é rei... Ou não! Vale a pena ser um cara estourado nessas redes sociais?
Tenho observado com atenção o novo burburinho do momento, o Lulu. Trata-se de um aplicativo para smartphones em que as mulheres tem a opção de qualificar positiva ou negativamente os rapazes de sua rede social, avaliando o desempenho do mancebo em aspectos como aparência, compromisso, desempenho sexual, entre outros. Note bem, eu disse qualificá-los, sem necessariamente ter que ser quantificado por isso, já que tudo isso, é feito anonimamente. Elas tem também a opção de descrevê-los através de adjetivos, denominados pelo aplicativo, de hashtags. Podem ser usadas descrições do tipo: #mãosfortes, #semprecheiroso, ou pejorativas como #filhodamamãe ou #fazoserviçoesome. 
Evidentemente, um aplicativo assim, rapidamente "bombaria" entre os jovens e adolescentes. Mas surpreendentemente, tem feito sucesso também, nas outras faixas etárias e entre as mulheres mais maduras. E as críticas à iniciativa, não tardaram a aparecer: Um absurdo! Uma invasão de privacidade! Uma vingança escandalosa!
Eu particularmente, acho um exagero. Dos críticos, é claro! Deixa falar! Creio que finalmente, as mulheres, sempre tão desunidas, tomaram pé da situação e resolveram trocar informações. Trocar figurinha. 
Um absurdo? Por que? Os homens sempre fizeram isso, de forma escancarada ou à boca pequena, as mulheres, peguetes, ficantes, sempre foram assunto nas rodas de amigos, ou nas sociais, nas baladas: "Fulana, já peguei!" "Ciclana, é uma periguete!" "Ah, ali eu já fui. Não vá não, que é pra casar." Doçuras do gênero... E ninguém nunca apedrejou as rodas de amigos. Sempre existiram os famosos clubes do bolinha, onde mulher só entra como assunto. Pior ainda, sempre houve a violência de divulgar a intimidade, fotos  e vídeos de suas parceiras na internet, após o fim do relacionamento. Isso não é ser vingativo? Por que agora, as críticas ao Lulú?
Hipocrisia claro, somada a um medo de exposição. Afinal, aos homens, a sociedade tudo permite. Eles sempre puderam, em nome do ego ou do status social, difamar as ficantes, ou ex-namoradas, depois de iludí-las, de pegar geral, sumir, e contar isso em mesa de bar, pros amigos e pra quem mais quiser ouvir. Afinal, "de que adianta pegar, se não puder contar, não é?". 
O silêncio sempre beneficia ao mais forte, e frequentemente, ao que está errado. Mas a sociedade é machista. Para os homens, mais vale a quantidade que a qualidade do serviço, quanto mais casos, melhor. Para as mulheres, ocorre o contrário. Como é que mulheres poderiam contar que já pegaram e o que acharam, se não anonimamente? Pois é, agora podem. Qualificar o quantificado, esclarecer que nem sempre o tanto é tão bom... A grande sacada, é que agora isso é aberto, num aplicativo, para quem quiser acessar.
É, elas conseguiram! Pioraram as coisas! Jogaram a "caquinha" alheia num daqueles cata-ventos eólicos. Caiu na net! Agora, está menos desigual, o cafa pode aprontar o que ele quiser, depois, ganha nota baixa no Lulu. Se se sentir ofendido, ele pode reclamar, exigir a remoção do perfil, ou pode ainda ler e usar as informações para mudar algo (esperança vã...).
Talvez ainda faltem nas hashtags, opções como #casadoesafado, #homemplacebo, #culturalmentevazio, #propagandaenganosa, #muitobarulhopornada ou um elogioso #ficaadica, #superrecomendo, #inteligente, #generoso, #criativo, #proativo, etc, no entanto, a princípio, o Lulú é uma iniciativa válida. 
Daqui a pouco, algum revanchista, aborrecido com a má fama de cafa recém adquirida, vai criar um outro aplicativo que permita igualmente, qualificar mulheres. É sempre assim, os homens inventam a moda, as mulheres reagem a ela, absorvendo-a e piorando. Quando eles percebem o estrago, correm atrás do prejuízo. E o mundo vem mudando desde sempre. Foi assim com o trabalho, o dinheiro, o álcool, o cigarro, com a liberdade sexual, e agora, com a liberdade de qualificar aqueles com quem se relacionou. Tempos modernos... Você pode aprontar, mas isso não vai mais ficar escondido sob a capa da hipocrisia social. Agora, vestidas de anonimato, as mulheres popularizaram o clube da Luluzinha, nos mesmos moldes do antigo clube do bolinha, só que pior, globalizado, pra quantas Luluzinhas quiserem participar. Pode entrar e qualificar à vontade. Só não vale mentir. Mas com a liberdade de que alguns homens fazem uso de maneira errada, creio que as mulheres nem vão precisar se dar ao trabalho, só dizer a verdade, já é o suficiente para inadvertidamente, detonar muita gente.
(Por Cris Vaccarrrezza)
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