Alheia

Quem seguisse até o fim da rua da saudade, dobrando à direita na esquina do tempo, poderia vê-la sempre lá, no hall da casa 14, sentada sozinha, escrevendo ou lendo alguma coisa. O corpo ainda na terra, como mandava o figurino, mas a cabeça, ah! A cabeça dispersa em sonhos pelo universo, muito, muito longe dali.
Sentava-se ali sozinha e nada dizia a qualquer transeunte, apenas lia, lia... E escrevia, talvez suas memórias, talvez sua alegria.
Escrevia para que recordasse, apesar das mãos enrugadas, da face sulcada, das alegrias da mocidade já vivida. Escrevia para recordar. Quem sabe, reescrevesse para corrigir o fio da reticência em algum parágrafo torto, ou alguma reminiscencia de seu passado.
Só mesmo quem fizesse muita questão de percebê-la, a divisaria da paisagem. Sentia-se tão bem por ali, que mimetizara-se. Mas não era mal educada, alheia apenas. Se a cumprimentassem, ela responderia, talvez um menear de cabeça, quem sabe um breve levantar de mão. Um cumprimento vago, nada mais. Nunca  mais os efusivos bye-byes de outrora, nunca mais os olhos de profunda ansiedade, aguardando o trem na estação. Agora, aguardava apenas o trem de ir embora.
A vida lhe ensinara que os caminhos não seguem necessariamente por onde esperamos. A vida lhe ensinou a resignar-se. Resignada, passou a escrever sua história à sua maneira, deixou de dar satisfação a quem não a compreendia, ou de dar bom dias formais, apenas por dar. parou de perguntar como estavam. Ninguém haveria de querer saber de verdade. Mera formalidade social. Odiava, disso tinha certeza, as banais formalidades sociais.
E assim vivia, alheia. Com sua cara amarrada e seu sorriso interno, sem notar o barulho dos passantes, sem ligar a mínima para o mundo lá fora, o mundo, que em verdade, nunca lhe pertencera, e ao qual, há muito deixara de pertencer.
Por Cris Vaccarezza

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